Pesquisa da Universidade de Sussex, na Inglaterra, mostra que a prática da leitura reduz em aproximadamente 70% o estresse.
“A arte inventa a realidade. Os poemas de Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral são um acréscimo à vida. Eles não existiam antes, então, você lê um poema desses, decora, aumentou um pouquinho a sua vida.” A fala de Ferreira Gullar, um dos maiores poetas que o Brasil já teve, é cirúrgica ao nos lembrar do poder da literatura e dos livros. A leitura sempre foi e, na pandemia da COVID-19 com o isolamento social, se tornou ferramenta ainda mais poderosa para equilibrar o bem-estar da psique humana. O livro é um amigo que nunca o abandona, sempre estará presente quando o procurar e jamais o deixará só.
A leitura é tão fundamental para a sanidade que existe a terapia pelos livros, a chamada biblioterapia, que existe desde a Antiguidade e já era praticada no Egito dos faraós, na Grécia e na Roma antigas. No início do século 20, com a comprovação científica dos resultados obtidos no tratamento dos feridos na Primeira Guerra, ela ganhou o status de ciência. Desde então, seu uso foi ampliado e a terapia pelos livros vem sendo empregada em serviços públicos da área social, saúde e educação em diversas partes do mundo. Além do custo baixo, seus resultados são rápidos e eficazes e o único efeito colateral é: pessoas que descobrem o prazer da leitura em qualquer tempo da vida não querem parar mais de ler.
Mikhael Rodarte, de 24 anos, estudante de engenharia mecânica na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), confessa que se tornou um leitor a partir das imposições da COVID-19. Antes, lia pouco, de um a dois livros por ano. "Na pandemia, tomei a decisão de ser o mais produtivo possível a partir da leitura e de cursos on-line. Separei de três a quatro horas do meu dia para ler. Para me incentivar, comecei com a releitura de “Harry Potter”, os sete volumes, e depois passei a investir em livros de assuntos do meu interesse: comportamento humano, linguagem corporal e linguagem fria (não verbal), programação neurolinguística (PNL), porque gosto de conversar, lidar com pessoas e de entender o outro.”
Conhecimento importante também profissionalmente, acrescenta, já que é vendedor em uma loja de veículos e precisa lidar com os clientes. “Quando me cansei desses temas, mudei para mercado financeiro, bolsa de valores, fundo imobiliário, porque quero mudar minha cabeça em relação ao dinheiro. Pensando no futuro, já que não sei se vou me aposentar.”
Até a semana passada, Mikhael, que se recuperou da COVID-19 que teve há um mês, enfrentando dor de cabeça, febre, perda do olfato e do paladar, já tinha lido 50 livros: “Compro todos, sempre o livro físico porque não gosto de ler no celular ou Kindle, e tenho muito ciúme deles. Na minha estante já tenho 100 obras e todo mês reservo R$ 100 do meu salário para comprar livros”. O futuro engenheiro revela que ler foi uma decisão particular, já que sua mãe, Elza, sempre leu muito e o incentivou desde pequeno, mas não amava ler. A tia, professora de redação, falava da importância da leitura, em sua casa via seus livros e até se surpreendia. Mas só agora entendeu. No momento, sua missão é despertar na namorada, Lídia, o prazer pela leitura: “Leio sempre perto dela, percebo que tem vontade, mas ainda falta força de vontade”.
Leitora voraz
Já a jornalista Deborah Almeida, de 23, é uma leitora voraz: “Desde que me entendo por gente. Minha mãe lia para mim enquanto ainda estava na sua barriga ‘O menino mágico’, de Rachel de Queiroz. Antes de aprender a ler, ela lia para mim e gostava tanto que cheguei a decorar as histórias do 'O bonequinho doce', 'A bonequinha preta' e 'O vestido que o vento leva'. E depois que passei a ler, livro é o que mais compro na vida. Meus pais sempre leram muito, me ensinaram e vou seguir pela vida. Na escola, era próxima da bibliotecária e em vez de levar para casa um livro por semana, ela me deixava levar quantos quisesse, já que queria ler muito e meus pais não tinham como me atender. Aliás, livro é meu presente preferido. Se perguntam, já passo minha lista da Amazon”.
Para uma leitora ávida, é difícil escolher o livro ou autor da vida. Mas Deborah destaca predileções, dependendo da fase. Criança, adolescente, ela se lembra dos livros “Poderosa”, de Sergio Klein, e “O diário da princesa”, de Meg Cabot – sua cachorra, aliás, se chama Meg. Depois, passou para os romances e, atualmente, é arrebatada por romances policiais. A série “Millennium”, do sueco Stieg Larsson, é um dos preferidos. Já que falta espaço em casa para tantas obras, o Kindle e troca de edições em sebos tem sido a saída: “Levo um livro na bolsa para todos os lugares. Se fico entediada, ele me salva. Livros sempre foram meus amigos e uma forma de sair da realidade. Leio muito e ainda mais na pandemia. Leio por prazer, para estudar e buscar conhecimento. De autobiografia, que gosto muito, como a da Rita Lee, até obras de sociologia e de movimentos feministas de várias vertentes”.
Reserva cognitiva
A leitura é uma ferramenta de prevenção para manter a saúde equilibrada, assim como de tratamento. A neurocientista e psicóloga Fernanda Rocha, especialista em neuropsicologia e terapia cognitivo comportamental (TCC), explica que na neuropsicologia há um conceito que descreve a capacidade que o cérebro tem de suportar danos sem apresentar perdas funcionais. É a chamada reserva cognitiva.
Segundo ela, esse conceito surgiu na década de 1990 a partir da observação de casos graves de acidentes vasculares em que os pacientes não apresentavam grandes perdas cognitivas ou comportamentais a despeito do tamanho da lesão adquirida.
Posteriormente, pesquisadores descobriram que em outras patologias cerebrais, como as demências, esclerose múltipla, epilepsias e até alguns transtornos psiquiátricos, o mesmo efeito acontecia. O que os pacientes tinham em comum eram práticas constantes durante a vida de atividades que exigiam empenho cognitivo, ou em outras palavras “esforço mental”.
Entre as associações conhecidas por criar essa reserva cognitiva estão a leitura, a alta escolaridade, o coeficiente de inteligência e atividades que envolvem algum tipo de raciocínio.
Entre as associações conhecidas por criar a reserva cognitiva estão a leitura, a alta escolaridade, o coeficiente de inteligência e atividades que envolvem algum tipo de raciocínio(foto: Lacie Slezak/Unsplash) Fernanda Rocha destaca que é possível fazer um paralelo com a musculação. “Apesar de o cérebro não ser um músculo, mantê-lo em atividade não só o preserva de males pontuais (deixando-o 'em forma'), mas também o protege no futuro, quando os efeitos do envelhecimento saudável ou patológico estarão batendo à porta. Portanto, recomendo boas leituras.”
A neurocientista e psicóloga enfatiza que a prática da leitura em particular parece ter um efeito para além da reserva cognitiva, do aumento de conhecimento e do vocabulário. Pesquisa feita pela Universidade de Sussex, na Inglaterra, mostrou que a prática da leitura reduziu em aproximadamente 70% o estresse dos indivíduos participantes, tanto em medidas subjetivas de percepção do estresse quanto em medidas de pressão arterial e tensão muscular.
“Em psicoterapia, uma das técnicas muito usadas para ensinar pacientes sobre os problemas que eles apresentam é a chamada psicoeducação, que envolve como prática a indicação de leituras sobre diversos temas da saúde mental. Hoje, temos títulos disponíveis à população em geral. Eles podem ensinar estratégias de enfrentamento da ansiedade, da depressão, do estresse, da obesidade, como ser produtivo em home office, como ter uma vida com valor, entre outros temas tão importantes em tempos de pandemia.”
Se ainda não descobriu esse universo para se jogar, o primeiro passo para abrir um livro e começar a ler é começar pelo que gosta, escolher um assunto que lhe interessa. A leitura é uma fonte de prazer. Tomada esta atitude, muitos efeitos virão em seguida, uma lista repleta só de ganhos pessoais, emocionais, sentimentais e cognitivos. Da “Bíblia” a “Harry Potter”, o importante é se entregar à leitura.
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